Em meio aos protestos pelo uso ético e racional dos impostos pagos por toda a população em transportes, saúde e educação, e às críticas aos investimentos do dinheiro público em estádios e infraestrutura destinados ao futebol (Copa 2014), chama a atenção a premiação do projeto de “Manejo integrado de águas pluviais do Estádio Nacional de Brasília Mané Garrincha” (26/60). De autoria da Fluxus Design Ecológico, a proposta foi finalista do Prêmio von Martius de Sustentabilidade 2013 da Câmara de Comércio e Indústria Brasil-Alemanha de São Paulo.
Prêmio Von Martius
Criado no ano 2000 pela Câmara de Comércio e Indústria Brasil-Alemanha de São Paulo, o prêmio visa incentivar iniciativas de empresas, organizações não governamentais, indivíduos, governos e instituições nacionais que promovam o desenvolvimento econômico, social e cultural alinhado ao conceito de desenvolvimento sustentável. O pesquisador alemão Carl Friedrich Phillip von Martius (1794 – 1868) fez pesquisas científicas em quase três anos viajando pelo Brasil, entre 1817 e 1820, e contribuiu para o conhecimento e a valorização do ambiente natural e cultural de nosso País.
O engenheiro civil Guilherme Castagna, sócio-fundador da Fluxus Design Ecológico, coordenou o plano de manejo de água do novo estádio, finalista do prêmio Von Martius na categoria Tecnologia. Guilherme acredita que a reforma do estádio nacional ficará mesmo como um “legado” da Copa, independentemente de qualquer crítica que se possa fazer – o “Mané Garrincha” recebeu a abertura da Copa das Confederações de 2013 e será palco de várias partidas da Copa do Mundo de Futebol de 2014. Para o profissional, mais do que um projeto de engenharia, a obra é também um projeto educativo, “e cumprirá esse papel muito além da Copa, ainda mais em se tratando de uma cidade que sofre enormemente com a aridez causada em grande parte pela forma de ocupação da região”. Guilherme explica que o projeto será executado em fases, “e só estará completo ao término da Copa (no que foi chamado de “Legado da Copa”).
A reforma completa do “Mané Garrincha” teve um cunho iminentemente ecológico. O objetivo último dos responsáveis pela arquitetura ecológica (a Castro Mello Arquitetos) é fazer dele o primeiro estádio no mundo a receber a certificação LEED Platinum – Leadership in Energy and Environmental Design (ou Liderança em Design de Energia e Meio-Ambiente) do Green Building Council – Conselho de Construções Sustentáveis (EUA).
Aliás, a obra foi financiada com verbas do BNDES, e sob gestão pública do governo do DF. “O BNDES incentivou as empreiteiras a buscarem a certificação LEED, mas nós buscamos o selo Platinum, o mais alto em termos de construção sustentável”, estima Ian McKee, parceiro executivo da Castro Mello Arquitetos. Para alcançarem o selo de excelência, os planejadores não cuidaram apenas da EcoArena, mas envolveram todos os serviços oferecidos a visitantes, durante e depois da Copa(os estádios têm vida útil entre 50 e 70 anos, e os custos da manutenção de um modelo não racional de desperdícios com energia e água podem ser o pior legado desse mega investimento).
Os custos para sediar a Copa 2014
Se a África do Sul gastou R$ 7,7 bilhões de reais para fazer sua Copa de futebol, o Japão despendeu R$ 10,1 bilhões, e a Alemanha R$ 10,7 bilhões, é justo perguntar porque o Brasil deverá despender R$ 28,1 bilhões em obras relacionadas a Copa até o início dos jogos em 2014, segundo a previsão atual do comitê organizador. Aí estão incluídos 327 projetos que vão desde obras de infraestrutura básica, como aeroportos e corredores exclusivos para ônibus, até gastos diretamente ligados ao torneio de futebol.
A justificativa oficial é de que muito desse dinheiro será gasto em obras de infraestrutura e mobilidade urbana necessárias no País, com ou sem o torneio. E as empresas e Estados envolvidos na adequação dos estádios alegam que o padrão Fifa ajuda a encarecê-los. O imbróglio piora se consideradas as alegações sobre o uso de recursos públicos em tais obras e as isenções fiscais que beneficiam empresas e governos dentro do programa Recopa. O que se estende à Fifa, que deixaria de pagar em torno de R$1 bilhão de impostos.
No artigo “De onde vem o dinheiro da Copa”, publicado pela BBC Brasil, Holger Preuss, professor de Economia do Esporte na Universidade Johannes Gutenberg-University (Alemanha), que estudou o impacto econômico das duas últimas Copas, afirma que o problema não está em gastar muito, mas em “garantir que, em cada caso, os recursos estejam sendo usados da maneira mais eficiente possível”.
Especializado em “Wetlands” (sistemas de tratamento de águas baseados na utilização de plantas aquáticas), Guilherme Castagna foi premiado por ter integrado o paisagismo e o sistema de drenagem do Mané Garrincha, em um sistema que retém, purifica e utiliza a drenagem de águas externas e de chuvas em lagos e cisternas, dentro e fora do estádio. Ao final, a água reaproveitada no Mané Garrincha deverá cobrir 100% do consumo em eventos ao longo do ano.
Sob uma persectiva mais ampla, o projeto do estádio foi sistematizado como parte do trabalho desenvolvido pelo programa Cidades e Soluções, da ABCP (Associação Brasileira de Cimento Portland), do qual fazem parte a Fluxus Design Ecológico e FCTH/USP (Fundação Centro Tecnológico de Hidráulica). Segundo Guilherme, os materiais produzidos pelo grupo serão destinados a construtoras e prefeituras de pequenos municípios.
Mas a reconstrução do Estádio Nacional de Brasília não considerou apenas a ecologia da água. Reerguido com concreto e aço reutilizados do antigo estádio, o local terá 2,5 milhões de m2 de espaços verdes, incluindo os tais “wetlands” (jardins purificadores de água), fauna nativa e estacionamento para bicicletas. O projeto é 100% eficiente e autossuficiente em energia –usa lâmpadas LED em seu consumo e 9 mil placas fotovoltaicas instaladas na cobertura para a produção de 2,54 mWatts (equivalente ao consumo de 1.500 casas/dia); o excedente poderá ser revertido para a rede pública do DF. A fachada aberta da EcoArena trará conforto térmico pela ventilação natural e a cobertura funcionará como um grande chapéu protegendo a torcida da chuva e do sol forte de Brasília.
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Leia o bate-bola com Guilherme Castagna, coordenador do projeto premiado, “Manejo integrado de águas pluviais do Estádio Nacional de Brasília Mané Garrincha”
Isabel Gnaccarini – O que significa o Prêmio em sua carreira e para a preservação e uso racional da água e dos recursos naturais?
Guilherme Castagna – A maior importância do prêmio é a visibilidade que ele irá proporcionar a esse novo olhar de cuidado com a água. Um olhar que oferece a oportunidade de enxergar a água como um recurso precioso, trazendo-o ativamente à infraestrutura da cidade de forma a nos integrar de forma positiva ao ciclo hidrológico local. No que se refere à água de chuva, após a conclusão do nosso projeto, o estádio passará a ser um pólo produtor de água limpa, além de gerador de sua própria água, o que reconfigura completamente a forma como são convencionalmente construídas edificações de qualquer porte, em que consumimos água limpa a um alto custo ambiental e energético, devolvendo água suja. Pela contaminação dos mananciais locais com o esgoto e a poluição difusa (advinda da drenagem) precisamos recorrer à água limpa de locais cada vez mais distantes, dependendo de grandes e custosas estações de captação, tratamento e bombeamento de água. Em resumo, enquanto o padrão que engolimos hoje em dia é o de consumir água limpa e devolver água imunda, o estádio produzirá sua própria água limpa para consumo não-potável, com a recarga dos lençóis freáticos, melhoria do microclima com o aumento da umidade, redução das ilhas de calor, devolução de água limpa à rede de drenagem, e redução de custos de operação, com o atendimento de 100% do consumo não-potável apenas com água de chuva.
IG – O que representou poder fazer isso num estádio de futebol (e para a Copa)?
GC – Nosso projeto será executado em fases, e só estará completo ao término da Copa, no que foi chamado de “Legado da Copa”, deixado como herança deste evento. Mais do que um projeto de engenharia, é também um projeto educativo, e que cumprirá esse papel muito além da Copa, o que para nós serviu de tremenda inspiração, ainda mais em se tratando de uma cidade que sofre enormemente com a aridez causada em grande parte pela forma de ocupação da região.
IG – O que você diria sobre as críticas a respeito dos custos de estádios e obras da Copa levantados nas recentes manifestações populares que vimos nas ruas de todo o Brasil?
GC – Creio que chegamos num momento da história do país em que os cidadãos finalmente começaram a despertar sobre a necessidade de levantarmos nossas vozes, e mostrar a indignação com relação à forma como os investimentos públicos são conduzidos no nosso país. Penso que há uma série de questões a refletir a respeito da realização da Copa, e dos altos custos envolvidos com a criação da infraestrutura necessária à realização dos jogos. Acredito que o primeiro passo seja exigir transparência na forma como foram investidos, não só os recursos deste evento em especial, como de fato são todos os investimentos públicos, para que possamos nos apropriar melhor desses números e avaliar o impacto e a efetividade desses investimentos, exigindo ajustes junto aos nossos representantes. Como projetista, afirmo com tranquilidade, que a busca que fazemos por projetos funcionais, de baixo custo de execução, operação e manutenção pautou o plano de manejo integrado de águas pluviais do estádio de Brasília.
IG – Quais seus planos profissionais para o futuro e como você acredita que esse trabalho poderá contribuir para o bem-estar no planeta?
GC – Seguindo a experiência do projeto do estádio estamos ampliando a escala dos nossos trabalhos, desenvolvendo modelos sistêmicos de manejo integrado de água em projetos de loteamentos, agroindústrias, estabelecimentos de hotelaria e meios de hospedagem, com disposição especial em trabalhar com pequenos municípios, onde compreendemos que há uma abertura e uma maior facilidade na reorganização da infraestrutura dos serviços de água com baixos investimentos.
Estamos ainda nos preparando para um tour educativo em faculdades de engenharia e arquitetura de São Paulo, compartilhando essa visão inspiradora de trabalho com a água no ambiente construído. Estamos também fortalecendo nossa afinidade com o EPEA Brasil, escritório que representa a metodologia de Design Ecológico Cradle to Cradle (Berço ao Berço) no país, que, tenho certeza, sinaliza um roteiro técnico muito claro para o estabelecimento de produtos e sistemas projetados de forma alinhada à um futuro de plenitude e abundância, assim como cartilhas práticas dedicadas à pessoas sem formação acadêmica, com base na permacultura, oferecendo dicas de soluções simples e de baixo impacto para as questões relacionadas ao manejo de água em suas casas.
Se onde há água há vida, então acreditamos que nosso trabalho possa melhorar de forma positiva a qualidade de vida de todos, por meio da reestruturação da forma como a sociedade convive com a água.